Leia o texto de Denize Guedes, não a filha de um palhaço, mas a filha de um BRASILEIRO chamado Amaury Guedes que até hoje luta por justiça no Caso Aerus. Belíssimo texto tirado do blog http://tinylittlebox.wordpress.com.
"No princípio, ele era da manutenção. “Entelamento”, especifica com voz relevante. Palavra pouco usada, tive de recorrer ao Google para entender que nesse setor ele cuidava de reparar as telas dos lemes e profundores dos aviões. Ficou pouco lá, logo acabaram com a função e ele foi procurar um curso de telegrafista com a ideia firme de integrar a equipe de terra. Junto, tratou de frequentar a estação de rádio como ouvinte e de ficar bem de olho nos teletipos que informavam número de passageiros, horários e boletins meteorológicos aos comandantes. Quando conseguiu o posto, não tardou o dia em que informatizaram a área. Pensou rápido e deu um jeito de se encaixar como radiotelegrafista de vôo – foi assim que primeiro voou e também sofreu seu único acidente. Vieram os computadores de novo e viu mais um trabalho ir pelos ares. Como já somava alguns anos na casa, ganhou um quepe, uma farda azul-marinho da tripulação e um OK para ficar até completar o tempo de aposentadoria.
Hoje, fios negros resistentes em meio ao branco da cabeleira rala, o comissário de bordo aposentado da Varig e meu pai, Amaury Antunes Guedes, 74 anos, tem três fantasias. Não daquelas de sonhar, mas de vestir mesmo: de palhaço, alma penada e anjo. Essa última anda emprestada com Cléia, uma colega de batalha. Guarda tudo em seu carro. Abres-se o porta-mala e, feito aquelas caixas de onde pulam um palhaço, começam a sair uma bandeira do Brasil, cartolinas de cores chamativas, cartazes plastificados para pendurar no pescoço com barbante, dezenas de isopores com mensagens carregadas de humor típico deste seu Amaury. “Quem tem boca vaia Lula”, “Aerus em pratos limpos”, com logo do Fome Zero , e “Pura Tristeza”, em referência ao Partido dos Trabalhadores, são alguns deles. Quando não está na rua, em busca de estampar jornais e portais na internet, está em frente ao computador lendo as últimas notícias sobre a situação do Aerus, fundo de pensão da antiga Varig, que, sob liquidação desde 2006, atualmente paga 8% de seu benefício.
“Aproveito todo tipo de evento midiático para chamar a atenção. Somos milhares de aposentados sem receber o que é nosso direito”, diz.
Do entelamento ao protesto, algo parece unir essas duas pontas da história de meu pai: um exacerbado instinto de sobrevivência. Se em 36 anos de serviços prestados à companhia aérea que já foi a “estrela brasileira no céu azul” ele foi se agarrando de oportunidade em oportunidade para se manter vivo no campo de trabalho, em 19 de aposentadoria, segue ágil – do jeito que a artrose no joelho esquerdo permite – na briga por aquela que um dia lhe garantiram ser a melhor idade. “Minha contribuição era de 20% do salário para ter uma velhice digna e tranquila, tenho guardados os holerites com os descontos. Por isso luto”, lamenta aquele que sempre me ensinou a ser persistente e pertinaz nesta vida.
Foi a partir de 2006 que acordou do sonho da aposentadoria, com o início do processo de falência e posterior recuperação judicial da Varig. Foi também nesse ano que primeiro fez um protesto na rua. Talentoso para gerar mídia espontânea, emplacou logo uma nota com foto no “Correio Braziliense” dentro de uma matéria sobre a manifestação de funcionários públicos daquele dia: “Aposentado chora na praça”, já esboçando as principais características da figurinha fácil de qualquer grande evento com cobertura jornalística que viria a se tornar, aparece na Praça dos Três Poderes, capital federal, com a inseparável bandeira verde-amarela, os olhos marejados e um cartaz pedindo para Lula olhar pela Varig. “Peguei carona no protesto. Eu achava que Lula era a solução, ele dá dinheiro para bancos, para ruralistas, para todo mundo. Achava que iria ajudar a Varig. Estava enganado”, lembra-se.
A decepção não seria tão grande caso também não acumulasse no currículo de brasileiro anos de militância pelo PT, tempo em que se familiarizou com bandeiras e cartazes em praças públicas. Na pasta plástica em que guarda o seu clipping – ou “portfólio”, como gosta de chamar – há uma matéria da “Folha de S.Paulo” de 2006. Alto de página, foto estourada, ele segurando uma bandeira chamuscada e com rombos que ilustra um texto sobre a situação da companhia aérea à época. “Amaury Guedes, funcionário aposentado da Varig, faz protesto no aeroporto de Guarulhos (SP), onde queimou bandeira do PT”, trazia a legenda. Era o retrato das ilusões perdidas do meu pai publicado em jornal. “Lula faz coisas boas, só que a variante veio diretamente prejudicar a nossa categoria. Parece que ele detesta a Varig. Este senhor que está no hospital também tirou o corpo fora”, fala, referindo-se ao vice-presidente da República, José de Alencar, que estava internado no Sírio Libanês – onde também fez protesto.
E a coisa foi acontecendo assim. Primeiro ele despiu a roupa de militante do PT, queimou bandeiras que costumava levar para tremular na avenida Tiradentes e em passarelas da Rubem Berta (fundador da Varig, por sinal), pegou em cartazes com dizeres de cobrança e, por fim, vestiu fantasias para protestar por inteiro. Virou palhaço o meu pai. Também uma alma penada e um anjo. Os três dentro do mesmo homem. O mesmo homem dentro dos três.
Como um anti-herói tupiniquim a la Batman, atende ao chamado de qualquer fato que atraia gente com bloquinho e caneta na mão, câmera fotográfica ou de TV em riste, gravadores e celulares que carreguem vozes. Entra em seu anti-carro importado de 1999, relíquia dos tempos em que filé mignon e finais de semana em Recife eram o feijão com arroz simples que come hoje, ruma para o local de alarde, entra dentro de um anti-traje e espera que os repórteres que cobrem a pauta não o desprezem. Outras vezes, vai de ônibus e metrô com os anti-poderes levados na malinha preta de mão. “Quando vou fazer manifestação é como se me transformasse em um ator. Viro outra pessoa, não me sinto um palhaço”, conta.
Buraco do metrô de São Paulo, visita do papa Bento XVI, caso Isabella, acidente da TAM, acidente da Gol, show da Madona, protesto nu de ciclistas na avenida Paulista, instalação ao ar livre, greve da USP, fora Sarney, ele está em todas. Muitas vezes, fico sabendo por matérias na TV ou galerias de foto na Internet.
"No princípio, ele era da manutenção. “Entelamento”, especifica com voz relevante. Palavra pouco usada, tive de recorrer ao Google para entender que nesse setor ele cuidava de reparar as telas dos lemes e profundores dos aviões. Ficou pouco lá, logo acabaram com a função e ele foi procurar um curso de telegrafista com a ideia firme de integrar a equipe de terra. Junto, tratou de frequentar a estação de rádio como ouvinte e de ficar bem de olho nos teletipos que informavam número de passageiros, horários e boletins meteorológicos aos comandantes. Quando conseguiu o posto, não tardou o dia em que informatizaram a área. Pensou rápido e deu um jeito de se encaixar como radiotelegrafista de vôo – foi assim que primeiro voou e também sofreu seu único acidente. Vieram os computadores de novo e viu mais um trabalho ir pelos ares. Como já somava alguns anos na casa, ganhou um quepe, uma farda azul-marinho da tripulação e um OK para ficar até completar o tempo de aposentadoria.
Hoje, fios negros resistentes em meio ao branco da cabeleira rala, o comissário de bordo aposentado da Varig e meu pai, Amaury Antunes Guedes, 74 anos, tem três fantasias. Não daquelas de sonhar, mas de vestir mesmo: de palhaço, alma penada e anjo. Essa última anda emprestada com Cléia, uma colega de batalha. Guarda tudo em seu carro. Abres-se o porta-mala e, feito aquelas caixas de onde pulam um palhaço, começam a sair uma bandeira do Brasil, cartolinas de cores chamativas, cartazes plastificados para pendurar no pescoço com barbante, dezenas de isopores com mensagens carregadas de humor típico deste seu Amaury. “Quem tem boca vaia Lula”, “Aerus em pratos limpos”, com logo do Fome Zero , e “Pura Tristeza”, em referência ao Partido dos Trabalhadores, são alguns deles. Quando não está na rua, em busca de estampar jornais e portais na internet, está em frente ao computador lendo as últimas notícias sobre a situação do Aerus, fundo de pensão da antiga Varig, que, sob liquidação desde 2006, atualmente paga 8% de seu benefício.
“Aproveito todo tipo de evento midiático para chamar a atenção. Somos milhares de aposentados sem receber o que é nosso direito”, diz.
Do entelamento ao protesto, algo parece unir essas duas pontas da história de meu pai: um exacerbado instinto de sobrevivência. Se em 36 anos de serviços prestados à companhia aérea que já foi a “estrela brasileira no céu azul” ele foi se agarrando de oportunidade em oportunidade para se manter vivo no campo de trabalho, em 19 de aposentadoria, segue ágil – do jeito que a artrose no joelho esquerdo permite – na briga por aquela que um dia lhe garantiram ser a melhor idade. “Minha contribuição era de 20% do salário para ter uma velhice digna e tranquila, tenho guardados os holerites com os descontos. Por isso luto”, lamenta aquele que sempre me ensinou a ser persistente e pertinaz nesta vida.
Foi a partir de 2006 que acordou do sonho da aposentadoria, com o início do processo de falência e posterior recuperação judicial da Varig. Foi também nesse ano que primeiro fez um protesto na rua. Talentoso para gerar mídia espontânea, emplacou logo uma nota com foto no “Correio Braziliense” dentro de uma matéria sobre a manifestação de funcionários públicos daquele dia: “Aposentado chora na praça”, já esboçando as principais características da figurinha fácil de qualquer grande evento com cobertura jornalística que viria a se tornar, aparece na Praça dos Três Poderes, capital federal, com a inseparável bandeira verde-amarela, os olhos marejados e um cartaz pedindo para Lula olhar pela Varig. “Peguei carona no protesto. Eu achava que Lula era a solução, ele dá dinheiro para bancos, para ruralistas, para todo mundo. Achava que iria ajudar a Varig. Estava enganado”, lembra-se.
A decepção não seria tão grande caso também não acumulasse no currículo de brasileiro anos de militância pelo PT, tempo em que se familiarizou com bandeiras e cartazes em praças públicas. Na pasta plástica em que guarda o seu clipping – ou “portfólio”, como gosta de chamar – há uma matéria da “Folha de S.Paulo” de 2006. Alto de página, foto estourada, ele segurando uma bandeira chamuscada e com rombos que ilustra um texto sobre a situação da companhia aérea à época. “Amaury Guedes, funcionário aposentado da Varig, faz protesto no aeroporto de Guarulhos (SP), onde queimou bandeira do PT”, trazia a legenda. Era o retrato das ilusões perdidas do meu pai publicado em jornal. “Lula faz coisas boas, só que a variante veio diretamente prejudicar a nossa categoria. Parece que ele detesta a Varig. Este senhor que está no hospital também tirou o corpo fora”, fala, referindo-se ao vice-presidente da República, José de Alencar, que estava internado no Sírio Libanês – onde também fez protesto.
E a coisa foi acontecendo assim. Primeiro ele despiu a roupa de militante do PT, queimou bandeiras que costumava levar para tremular na avenida Tiradentes e em passarelas da Rubem Berta (fundador da Varig, por sinal), pegou em cartazes com dizeres de cobrança e, por fim, vestiu fantasias para protestar por inteiro. Virou palhaço o meu pai. Também uma alma penada e um anjo. Os três dentro do mesmo homem. O mesmo homem dentro dos três.
Como um anti-herói tupiniquim a la Batman, atende ao chamado de qualquer fato que atraia gente com bloquinho e caneta na mão, câmera fotográfica ou de TV em riste, gravadores e celulares que carreguem vozes. Entra em seu anti-carro importado de 1999, relíquia dos tempos em que filé mignon e finais de semana em Recife eram o feijão com arroz simples que come hoje, ruma para o local de alarde, entra dentro de um anti-traje e espera que os repórteres que cobrem a pauta não o desprezem. Outras vezes, vai de ônibus e metrô com os anti-poderes levados na malinha preta de mão. “Quando vou fazer manifestação é como se me transformasse em um ator. Viro outra pessoa, não me sinto um palhaço”, conta.
Buraco do metrô de São Paulo, visita do papa Bento XVI, caso Isabella, acidente da TAM, acidente da Gol, show da Madona, protesto nu de ciclistas na avenida Paulista, instalação ao ar livre, greve da USP, fora Sarney, ele está em todas. Muitas vezes, fico sabendo por matérias na TV ou galerias de foto na Internet.
Às vezes, é ridicularizado, outras enaltecido. Não fica chateado quando o interpretam mal e sai contente quando contam sua luta. De um jeito ou de outro, vai logo correndo para o Tesouro Laser, gráfica na Praça da Sé onde faz todos os seus trabalhos de impressões e plastificações, para guardar a nova matéria. Quando é de TV e não grava na hora, procura no YouTube. No rádio ainda não falou muito.
Conhecido de profissionais de imprensa também já ficou. Um deles, editor do site Jornalirismo, Guilherme Azevedo, o convidou para ser entrevistado em uma das aulas do curso de Jornalismo Literário que conduz. Outro, um fotógrafo da “Folha”, foi cobrir uma escultura de gelo colocada em frente ao parque Trianon, na Paulista, por conta de uma campanha de conscientização contra o aquecimento global, e clicou o seu Amaury que andava por lá – como era de se esperar. Anotou o gmail do meu pai e mandou umas três fotos no mesmo dia. Eu soube através de uma ligação exultante.
Aliás, gelo. Quando ouviu falar das barras e barras de gelo que estavam derretendo sob o sol na avenida cartão postal de São Paulo, seguiu para lá o mais rápido que pôde. Foi a paisana mesmo, despido de fantasias. Queria apenas fotografar a imagem perfeita para mandar fazer um cartaz no Tesouro Laser simbolizando a situação dos seus vencimentos. “Até três anos, eu recebia R$ 5.689,00. Hoje, ganho R$ 758,00. A minha aposentadoria virou gelo, foi regredindo passo a passo”, compara. A tal foto das barras imortalizadas em gelo é das que ele mais usa para mandar e-mails para senadores e deputados. Para isso dá o nome de “passeata virtual”. Não costuma receber muitas respostas, mas já fica feliz quando voltam poucos e-mails e libera todas as mensagens que retornam com mensagem anti-spam.
E assim eu sei que ele vai até a última gota, do seu suor e do seu dinheiro derretendo com o tempo. Nos últimos dias, anda entusiasmado com um acordo que obriga o governo federal a acertar contas com a antiga Varig. Como o Aerus é o principal credor da companhia, boa parte do dinheiro deve ir para o fundo e dar sobrevida ao benefício de milhares de aposentados. “Melhor um péssimo acordo que uma boa demanda [judiciária]”, acredita.
Com sobrevida ou não, sei que de sobrevivência o meu pai entende. Está sempre por aí criando recursos e não desculpas para enfrentar as coisas da vida. Muito além das estratégias que criou nas primeiras páginas da sua carteira de trabalho, aprendeu japonês para servir a cobiçada rota Los Angeles – Tóquio na última década de sua carreira, fez um curso de informática logo que se aposentou para manter o cérebro instigado e livrou-se de medicamentos traja preta em plena depressão pós-problemas da Varig. “Fiz força e joguei tudo fora. Prometi comigo mesmo, não vou ficar dependente de remédio”.
Alguma coisa ele carrega dentro de si que o faz viver – apesar da injustiça, da incerteza e das adversidades. Quando penso que, em 1960, meu pai passou por um acidente aéreo que registrou dez vítimas fatais e saiu apenas com leves ferimentos, tenho certeza disso. Foi às 13h15 do dia 12 de abril (dia em que, 46 anos depois, pela primeira vez, o Aerus começaria a fazer pagamentos parciais). O avião PPCDS caiu logo em seguida à tentativa de decolagem de Pelotas para Porto Alegre (RS). “Morreram o comandante Barroso e o co-piloto Almeida. Sobreviveram 12. Eu fui o primeiro a pular, tinha gasolina pelo corredor. Corri para a estação de rádio e passei uma mensagem para o senhor Berta: ‘PPCDS acidentado, perda total, ignoramos o número de vítimas’”, conta.
Se não fosse a sua disposição por sobreviver, eu não estaria aqui para contar esta história. Nem ele estaria aqui para seguir estampando páginas de jornal, revista e internet – atual ofício que exerce com afinco. Como um palhaço que tira graça até mesmo da tristeza, meu pai tira forças até mesmo da sua enorme fragilidade.
É o melhor palhaço do mundo."
Mande a sua história relacionada ao drama do Caso Aerus para o e-mail avioesabatidos@gmail.com. Teremos o maior prazer em compartilhá-la. Não esqueçam de opinar no "Plebiscito Aviões Abatidos" no topo do blog, já ultrapassamos os 3 mil votos.
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